Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
Ao apresentar-se ao mundo como novo Pontífice, assim se dirigiu ao povo o Papa Bento XVI: “Depois do grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”. O Papa emérito Bento XVI, o grande, despediu-se hoje, último dia do ano de 2022, de nosso tempo e voltou para a casa do Pai. Acompanhamos com as orações para que esteja junto de Deus na glória e agradecemos a Deus pela sua missão entre nós. Permanecerá seu exemplo, seus escritos, seu legado.
Na homilia na basílica de São João de Latrão, em 7 de maio de 2005, o grande Papa Bento deu sinais claros de que estava a serviço da Palavra de Deus que é única, mas chega até nós por dois canais: a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição (cf. Catecismo da Igreja Católica n. 74-100). Em outras palavras, o Papa é o guardião primeiro e zeloso do patrimônio da fé e não o seu dono. Afirma ele, então, com palavras marcantes: “O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar, na Igreja, obriga a um compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensar e querer são leis. Ao contrário: o ministério do Papa é garantia da obediência a Cristo e à Sua Palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência à Palavra de Deus, tanto perante todas as tentativas de adaptação e de adulteração, como diante de qualquer oportunismo. […] O Papa tem a consciência de que está, nas suas grandes decisões, ligado à grande comunidade da fé de todos os tempos, às interpretações vinculantes que cresceram ao longo do caminho peregrinante da Igreja. Assim, o seu poder não é superior, mas está a serviço da Palavra de Deus, e sobre ele recai a responsabilidade de fazer com que esta Palavra continue a estar presente na sua grandeza e a ressoar na sua pureza, de modo que não seja fragmentada pelas contínuas mudanças das modas”.
Estamos próximos de mais um Curso para os Bispos aqui no Rio de Janeiro, e é impossível não recordar que o primeiro conferencista foi exatamente o então Cardeal Ratzinger, depois o Papa Bento XVI. Marcou o início de nosso Curso, que, sem dúvida, neste ano terá uma bela homenagem a ele.
Notemos que, antes, na Missa para o início do ministério petrino, Bento XVI já dizia: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me, contudo, à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história. […] ‘Apascenta as minhas ovelhas’, diz Cristo a Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença, que ele nos oferece no Santíssimo Sacramento. Queridos amigos, neste momento eu posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho vós, a Santa Igreja, cada um de vós singularmente e todos vós juntos. Rezai por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos. Rezai uns pelos outros, para que o Senhor nos guie e nós aprendamos a guiar-nos uns aos outros”.
A escolha do nome definia a sua admiração ao Papa Bento XV (1914-1922) e o seu amor a São Bento de Nursia, patriarca dos monges do Ocidente, assim como demonstrava os rumos do seu pontificado. Deixemos que o próprio Bento XVI nos fale: “Neste primeiro encontro, gostaria antes de tudo de falar sobre o nome que escolhi ao tornar-me Bispo de Roma e Pastor universal da Igreja. Quis chamar-me Bento XVI para me relacionar idealmente com o venerado Pontífice Bento XV, que guiou a Igreja num período atormentado devido ao primeiro conflito mundial. Ele foi um profeta corajoso e autêntico de paz e comprometeu-se com coragem infatigável primeiro para evitar o drama da guerra e depois para limitar as consequências nefastas. Nas suas pegadas, desejo colocar o meu ministério a serviço da reconciliação e da harmonia entre os homens e os povos, profundamente convencido de que o grande bem da paz é antes de tudo dom de Deus, dom frágil e precioso que deve ser invocado, tutelado e construído dia após dia com o contributo de todos” (Audiência Geral, 27/04/2005).
E prossegue: “Além disso, o nome Bento recorda também a extraordinária figura do grande ‘Patriarca do monaquismo ocidental’, São Bento de Núrsia, co-padroeiro da Europa juntamente com os santos Cirilo e Metódio e as mulheres santas, Brígida da Suécia, Catarina de Sena e Edith Stein. A expansão progressiva da Ordem beneditina por ele fundada exerceu uma influência enorme na difusão do cristianismo em todo o Continente. Por isso, São Bento é muito venerado também na Alemanha e, em particular, na Baviera, a minha terra de origem; constitui um ponto de referência fundamental para a unidade da Europa e uma forte chamada às irrenunciáveis raízes cristãs da sua cultura e da sua civilização. Deste Pai do Monaquismo ocidental conhecemos a recomendação deixada aos monges na sua Regra: ‘Nada anteponham absolutamente a Cristo’ (Regra 72, 11; cf. 4, 21). No início do meu serviço como Sucessor de Pedro peço a São Bento que nos ajude a manter firme a centralidade de Cristo na nossa existência. Que ele esteja sempre no primeiro lugar nos nossos pensamentos e em cada uma das nossas atividades!” (idem).
No seu pontificado, Bento publicou, além de quatro exortações apostólicas – “Ecclesia in Medio Oriente”, “Africae múnus”, “Verbum Domini” e “Sacramentum Caritatis” –, além das cartas apostólicas, constituições apostólicas e três encíclicas: “Deus caritas est”, “Spe salvi” e “Caritas in veritate”. Na primeira, recorda que “‘Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele’ (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: ‘Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem’ […]. Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto” (n. 1).
Na segunda lembra, a partir de Rm 8,24, que é na esperança que fomos salvos. “A ‘redenção’, a salvação, segundo a fé cristã, não é um simples dado de fato. A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho” (n. 1). Já na terceira e última encíclica do seu pontificado, Bento XVI se volta para a Doutrina Social da Igreja com a Caritas in veritate. Aí o Papa constata, de modo muito oportuno, que “a caridade é amor recebido e dado; é ‘graça’ (cháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf. Jo 13,1), é ‘derramado em nossos corações pelo Espírito Santo’ (Rm 5,5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade” (n. 4).
E continua: “A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é ‘caritas in veritate in re sociali’, ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconômicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais” (n. 5).
Por fim, quando, em 11/02/2013, Bento XVI renunciou ao múnus petrino, surgiram muitas especulações e era o ano da JMJ no Rio de Janeiro, sede que ele mesmo escolheu para esse grande evento. Sobre a renúncia reporto um texto de nosso irmão aqui do Regional Leste 1, D. Rifan: “Um grande desapego do alto cargo e influente posição, declarando-se apenas um humilde servidor, uma profunda humildade, não se julgando necessário e reconhecendo a própria fraqueza e incapacidade, de corpo e de espírito, para exercer adequadamente o ministério petrino, e ao pedir perdão – ‘peço perdão por todos os meus defeitos’. (Por trás da renúncia, 19/02/2013, online).
Bento XVI, depois da renúncia, agiu sempre na discrição e na obediência ao único legítimo sucessor de Pedro, o Papa Francisco. Afirmou Bento: “O Papa é um só, Francisco” (Vatican.news, 27/06/2019, online). Da parte do Papa Francisco nunca faltou, nas visitas e nas palavras, carinho e respeito para com o Papa emérito e sua última missão de ser, a partir do mosteiro Mater Ecclesiae, uma voz orante que ajuda a sustentar a Igreja. Disse o Santo Padre, em sua Audiência do dia 28 de dezembro último, sob calorosos aplausos dos peregrinos: “Uma oração especial pelo Papa emérito Bento 16, que no silêncio está sustentando a Igreja. Recordemos, ele está muito doente, pedindo ao Senhor que o console e o sustente neste testemunho de amor à Igreja até o fim”. E logo depois foi visitar Bento XVI onde, segundo dizem, ministrou-lhe a unção dos enfermos.
Pessoalmente tenho que agradecer, sem mérito nenhum de minha parte, ao Papa Bento XVI a minha nomeação para Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará em 13 de outubro de 2004 a e a minha nomeação para Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro a 27 de fevereiro de 2009.
Não poderia deixar de tributar meu sincero agradecimento pela sua escolha pessoal para que, após a jornada em Madrid, de que a Jornada Mundial da Juventude – JMJ – 2013 – fosse celebrada no Rio de Janeiro. Ele não pode estar conosco, mas o Papa Francisco colheu a alegria, o entusiasmo e o calor humano dos milhares e milhares de jovens que encheram a Praia de Copacabana para escutar o Sucessor de Pedro. Eu, como monge cisterciense, sempre tive uma sintonia espiritual com o precioso tesouro espiritual que foi o Magistério e o Pontificado do Papa Bento XVI, um magno e sumo pastor, em especial pelo seu nome, já que os cistercienses seguem a Regra de São Bento.
A notícia divulgada nesta manhão do último dia do ano de 2022 é para nós uma oportunidade de um grande exame de consciência no ano que termina e de nos colocarmos disponíveis para o novo ano que se inicia, agora com o olhar retrospectivo de um grande homem de Deus que partiu e que serviu à Igreja como “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Ao me deslocar para Roma nestes dias para suas exéquias recordo com carinho dos vários encontros pessoais que tivemos com ele e, em especial, seu grande amor à Igreja e à Cristo que marcou sua vida e missão. Para mim são profundas as palavras do ministério do Papa Bento XVI: “Cooperatores veritatis!”. Sempre busquemos ser, com Cristo, cooperadores da Verdade do Evangelho! Agora no céu, suplicamos, que o Papa Bento XVI junto de Deus interceda por todos nós que o amamos e continuamos reverenciando a sua obra, o seu pontificado, e o seu sorriso discreto e amável, uma das maiores obras teológicas e pastorais de todos os tempos. Descanse em paz! Deus lhe pague pelo seu testemunho de construtor de pontes, sem jamais renunciar a verdade da fé católica e apostólica.
Fonte: CNBB Nacional